quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Inerte

Esbarramos; e não são paredes de manteiga.É a rigidez da vida e imutabilidade do tempo passado e da incapacidade de intervenção no não dominado.

Aquietarmo-nos num fenómeno que não controlamos, nem remota, nem próxima, nem nada… É uma pobreza, duma humanidade flagrante.

Daí os Deuses ou os magos, ou os super-heróis ou o cabisbaixo queixo.

Doutra maneira, não haveria vida, felicidade ou tristeza, não restando nada mais que um agitar de ombros e humano sucumbir ao que nos é hetero, quase.

Estupidamente, acordamos no dia seguinte; relavando a alma, sem saber com que shampoo, com que motivos, com que ar, salvo, é claro, se há um sorriso que nos chama. A ele.

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Elogio da matreirice



Se há qualidade, no nosso povo, que eu aprecio, além da propensão genética para a confecção gastronómica, é a matreirice. A matreirice é da família da manha e do chico-espertismo, mas distingue-se destas por ser mais refinada e exigir uma ciência superior. Além disso, no que diz respeito à atitude perante a lei e as autoridades vigentes, há uma diferença entre os agentes dos referidos conceitos: o manhoso contorna a lei e deixa as autoridades de mãos atadas; o chico-esperto viola a lei e exaspera as autoridades; por sua vez, o matreiro respeita a lei, obrigando as autoridades a serem coniventes com a sua actuação, mas utiliza-a a seu favor. Esta noite, no Dragão, demos uma pequena amostra da nacional matreirice.
Aproveitando uma veterana falha infantil de um Campbell ainda com "Soul", o nosso madeirense rouba a bola ao guarda-redes arsenalista, com a mesma lata que o dono da esplanada pede 5 euros por uma cerveja a um camone. Enquanto os bifes de carne importada ainda tentam buscar argumentos para esboçar um protesto com o árbitro, o ladino "islander" rapidamente põe o esférico nos pés da nossa goleadora ave de rapina, que o empurra para dentro da baliza com a convicção e naturalidade de quem está a marcar o golo mais legal do mundo.
O homem do apito, verificando o exemplar cumprimento da lei por parte dos intervenientes, apressa-se a adequar o processo à celeridade das partes e limita-se a homologar a passagem da bola pela linha de baliza, entre os postes e por baixo da barra, permitindo assim o grito mais esperado pelas gargantas expectantes: "GOLO"!
Antes que o julgador mude de ideias, o nosso Falcao lança-se em voo planado, de peito aberto em direcção à massa delirante, em busca da merecida recompensa.
O circunspecto estratega francês, vendo os seus canhões arrombados por esta flor da inteligência, ainda se abeirou do juiz para pedir explicações, mas não logrou ver as suas questões respondidas. Era impossível: a palavra "matreirice" não existe em sueco.
De todo o modo, Sr. Arsénio, não fique a lamentar a falta de vocabulário (ou será de memória?). A gente explica o que é a matreirice, recorrendo a este elucidativo vídeo gravado em 2004. É que uma imagem vale mais do que mil palavras, não é verdade?

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Man in black









Corre, Homem, corre,
para levar a justiça,
lá, onde a justiça morre.

Por entre os escolhos da dúvida,
apressa-te a ir mostrar
a passageira verdade
com que, amanhã, te irão sufocar.

Mas quem sabe, no fragor da luta,
qual a verdade absoluta?

Avança, sozinho, avança,
pelo tapete de esperança,
que o teu silvo é uma lança
que não serve para matar

e aos quatro ventos revela
a razão que sabes ser tua.
Aqueles que clamam na péla
apenas verão sob o Sol
a face que tu viste na Lua.

Corre, Homem, corre,
e como um Deus interino,
num segundo decide o destino
desse mundo pequenino.

Mas o suor que te beija o rosto
é o mosto da decisão
que há-de cair sobre a terra
como prova de que és humano.

E só é humano quem erra.

Corre, Homem, corre,
até ao suspiro final,
pelos bosques da multidão,
pelas searas de ingratidão,
pelos campos do pensamento,
até ficares só, de novo,
no sempre grato esquecimento.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O diploma que faltava

Alvíssaras, alvíssaras!
Finalmente foi publicado o diploma legal que fazia falta à nossa República. A Europa e o Mundo, nas suas admiráveis novas concepções, exigiam de Portugal este passo tão importante na direcção do progresso social e político.
Como pioneiros des(cobridores) do globo terrestre, como precursores da abolição da escravatura e da pena de morte, impunha-se-nos a responsabilidade acrescida de contribuirmos de forma paradigmática e à escala universal, no que a esta questão diz respeito, para uma mudança de mentalidades e de costumes.
Somos um povo pequeno em tamanho, mas grandioso em exemplo. Somos a maquete política dos futuros empreendimentos antropológicos da civilização ocidental. Somos a cobaia murídea na descoberta da panaceia para as fatais maleitas sociais do passado. Somos o corpo de intervenção que escolta o frágil autocarro da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
O príncipio da dignidade humana, o princípio da igualdade, o princípio da universalidade, reclamavam a alteração legislativa ora levada a cabo. Mas não se trata apenas de defender princípios gerais. Trata-se da vida de pessoas individuais e concretas, com sonhos, com angústias, com projectos, com medos, com sentimentos... Enfim, pessoas como todos nós. Os visados, durante séculos discriminados, necessitavam deste texto legal para poderem efectivamente viver, e não apenas sobreviver, arrastando a sua existência cadavérica pelas ruas da vergonha e da clandestinidade.
Este documento histórico é a prova viva de que a magnanimidade dos homens pode e deve ser mais veloz e virtuosa do que a bondade divina, que tantas vezes nos faz duvidar da sua existência. Esta é a prova da força incomensurável da palavra, é a prova de que se pode mudar o mundo com dois artigos apenas.
Perdoem-me aqueles que têm opinião diversa, mas não me podem acusar de parcialidade, porquanto eu não me dedico às práticas em causa no diploma. Levanto aqui a minha voz apenas para celebrar a justiça e o progresso das mentalidades. Levanto a minha voz para anunciar aos incautos, aos distraídos, aos adormecidos, aos imergidos na modorra informativa que nos injectam diariamente que, no dia 26 de Janeiro de 2010, no jornal oficial da nossa República, foi finalmente publicada este histórico texto legal, o texto por que muitos esperaram e por que muitos morreram sem ver nascer. Aqui deixo o seu sumário, para assinalar essa data histórica:

"Portaria n.º 61/2010: Autoriza, no período entre 15 de Janeiro e 15 de Fevereiro de 2010, o exercício da pesca com arte de ganchorra manobrada com sarilho."